Marte ataca!
Por Rui Zink
Primeiro, a declaração de interesses. Sou um dos muitos portugueses que nunca viveu acima das suas possibilidades. Chateia-me por isso que me venham agora rotular de esbanjador irrealista e preguiçoso. Segundo: à tirada do "não te perguntes o que teu país pode fazer por ti, mas sim o que podes fazer pelo teu país", a balança está do meu lado. Como todos os carolas, substituí o Estado e o Governo em muitas funções públicas. (Posso enviar CV.) Terceiro: estou disposto a sacrifícios, como não havia de estar? Sou professor. Sou também escritor-português, ou seja, duplamente habituado a fornecer pro bono o meu trabalho à comunidade.
Posto isto, os erros do Governo. Todos os governos erram, pela simples razão de que o cargo não isenta da asneira. O que já mancha a honra é o não assumir o erro. Por exemplo, quando alguém pôs em cima da mesa a nacionalização do BPN, tornando dívida pública um vício privado, teria eu tomado a decisão certa? Não sei. Decidir é difícil. Decidir sob pressão ainda pior. Mas, sabendo agora que foi um erro descomunal, pelo menos um pedido de desculpas seria bem-vindo.
Quando um governo eleito, seja que de cor for, me pede sacrifícios, eu escuto com atenção. Um salário, dois salários? Eu escuto. Escutámos todos. O défice, a troika, a dívida, o risco de falência técnica, etc. Tudo bons – e até certo ponto verdadeiros – argumentos. O problema vem depois, quando começamos a perceber que aquilo que era temporário afinal é para ser definitivo. Que está uma revolução hiperliberal em curso. Que a crise até foi a lotaria para fazer a inversão de marcha tranquilamente.
Nos últimos anos criou-se a pior das modas do mundo: a desmesura nos salários dos gestores. Muitos não passam de apostadores que dizem "amanhã faz sol" e, depois, querem o bónus pela proeza mas, caso chova, encolhem os ombros: "Eu não controlo o tempo, apenas o prevejo." Mal por mal, prefiro a Maya. Ainda me lembro da justificação de Vítor Constâncio para a exorbitância: "O trabalho deve ser bem pago", apenas sinistra porque só se referia à casta. Mais cómica só a líder do FMI, que não paga impostos, mandar os gregos pagar impostos. Lembro também a frase do único secretário de Estado que por cá cumpriu prisão efectiva, a propósito de uma acusação de fraude: "Nessa empresa eu era apenas administrador, só ia lá uma vez por mês."
A máquina do Estado continua apetecível, mesmo para os que, na linha de Mitt Romney e Passos Coelho, dizem que querem menos Estado. Como podia não ser, com o dom de arrecadar impostos e exercer a única violência legítima? A diferença está no que cada um quer que o Estado faça, quais as prioridades. Ninguém é contra o Estado, a começar pelo PSD e pelo PP. Salvo erro, os milhares de cargos nomeados pelos governos dos últimos 38 anos foram preenchidos em 76,3% precisamente por elementos ligados a estes dois partidos. (Não é preciso irem conferir as contas, confesso que acabo de inventar estes números. Mas parecem rigorosos, não é? É a magia dos números, como diria o bom matemático mas triste ministro Nuno Crato.)
As pessoas estão a manifestar-se pelas mais variadas razões. Não estamos todos de acordo em muitos pontos – nem sequer, caro Paulo Portas, no essencial. (Para isso era preciso que desde logo estivéssemos de acordo sobre o que é o essencial. Dizer "Portugal" é batota.) O que acontece é que, não estando de acordo, há momentos em que um grupo, uma sociedade, entende que, sim, sobreviver exige "que rememos todos para o mesmo lado". Mas as regras têm de ser claras. Estamos a ser atacados por marcianos? Caramba, nesse cenário até Manuel Loff e Rui Ramos lutarão lado a lado contra os invasores verdes!
Eu também vi filmes desses, meu caro Pedro Passos Coelho. O busílis é que esse bonito pacto temporário de não-agressão tem duas versões. Numa os aliados temporários dizem "Quando isto terminar mato-te" e, maravilhoso romantismo do cinema, até adivinhamos que vão ser amigos para sempre. Na outra, mais cínica, quando vão a apertar as mãos pela missão cumprida, o mais esperto aproveita para sacanear o parceiro social e ficar com tudo. Não sei se tu vais a tempo de perceber o filme. Mas um governo, gestor temporário do bem comum, tem de perceber isso. Já agora um conselho: neste esforço colectivo de "emagrecer o Estado" e "salvar Portugal", um bonito gesto de paz seria alienares em hasta pública o consultor António Borges. E anuirás que o dr. Relvas é a alma ideal para tratar do negócio.
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É certo que podemos estar perante o pior momento da Democracia pós 25 de Abril.
Mas não, nunca, deve, ou será, momento para baixar os braços.
Os maiores de ontem são os fracos de hoje, os sérios de ontem, são os corruptos de sempre, e os criminosos cada vez, mais instruídos, mais protegidos, ate as instituições já estão abandalhadas, vem dela essa justiça popular.